1. INTRODUÇÃO
A importância em se pesquisar e conhecer a obra de Miguel Gontijo, se deve principalmente a sua trajetória que teve início na década de 60, de onde vem experimentando várias técnicas, materiais e suportes, culminando num conjunto de obras com estilo próprio e bastante particular, sendo agraciado em 2011 com o prêmio de melhor artista plástico contemporâneo pela ABCA – Associação Brasileira de Críticos de Arte, com sede em São Paulo.
2 – DESENVOLVIMENTO
Para desenvolvermos este trabalho, fizemos contato com o artista que prontamente nos recebeu em sua casa e atelier. Lá nos falou de sua obra, do seu processo de criação e materiais utilizados.
Nas paredes de sua casa, onde mantêm um conjunto de obras do seu acervo pessoal, mostrou e contou um pouco do desenvolvimento do seu trabalho, referências de cada fase de sua criação. Num ato de generosidade, nos presenteou com catálogos de suas exposições e com a edição de um belíssimo livro onde está catalogado grande parte de suas obras.
Fizemos o registro fotográfico desta visita e de alguns de seus trabalhos. Através destes materiais e registros e de um incansável bate papo com o artista, falaremos a seguir sobre ele e sua obra.
2.1. O ARTISTA
Miguel Gontijo é mineiro de Santo Antonio do Monte, formado em história e filosofia, e pós-graduado em Arte e Contemporaneidade.
Recebeu diversos prêmios em quase todo o território nacional e fez várias exposições individuais, possuindo obras em entidades públicas no Brasil e no exterior.
Em 2004 publicou o livro “Profanas Escrituras”, que no ano seguinte foi lançado em Portugal com a exposição plástica de mesmo título.
O artista vive e trabalha em Belo Horizonte.
Recentemente, o jornalista Eduardo A. Reis, escreveu o seguinte sobre Miguel:
“Ele mora em casa modesta de bairro simples da capital mineira. Ruas tão estreitas, que, para estacionar meu poderoso New Beetle, preciso botar dois pneus sobre a calçada estreitíssima. As filhas, encantadoras, são universitárias, e a mãe delas, psicoterapeuta, sai de casa num carro comum para trabalhar no centro da cidade. O ateliêr ocupa um quartinho minúsculo: não dá para pintar mais que um quadro de cada vez, nem haveria espaço para estocá-los, mesmo porque são todos vendidos. ...Visitando-o na casa modesta do bairro modesto, você vai ser recebido com café, queijo e pão de padaria servidos na mesa da copa. E vai conhecer um gênio, que também se amarra numa boa cerveja e numas taças de vinho tinto”.[1]
Estivemos lá, conferimos o que disse Reis. De lá saímos diferentes, porque se o artista é aquele que transforma seu entorno, Miguel Gontijo personifica este conceito. Com seu olhar vai imprimindo um sentido próprio em cada detalhe de sua casa/atelier/galeria. Ao transformar uma caixa de doce em oratório, a enciclopédia em obra de arte, as teclas de uma antiga máquina de escrever em vaso de flores, ele resignifica os espaços e os objetos.
Com seu olhar contemporâneo, subverte a ordem das coisas. Sua pintura dialoga com outras artes, outro tempo. Ora ele mostra o passado, ora é o presente que se impõe.
O experiente artista dos anos 60 nos confidencia que nunca usou um terno, o novo Miguel, num gesto de carinho, vai se render às convenções, no casamento das filhas.
Pessoas de muitos países conhecem a obra de Miguel Gontijo mas é entre ruas estreitas, onde vizinhos se cumprimentam e cumprimentam os visitantes é que encontramos o artista no seu fazer diário, artífice paciente, de tudo encantado e para nós encantador.
2.2. A OBRA
Falar da obra de Miguel Gontijo é como estar num jogo de cartas: tudo pode acontecer e o resultado é sempre uma expectativa, uma incógnita. No seu jogo, às vezes se joga, ora esconde o jogo, mas as cartas estão postas.
Não há um sentido ou caminho a seguir, porque como diz o próprio artista “aqueles que dão certo na vida são os que escolheram apenas um caminho”. Mas ele dá certo, mesmo trilhando caminhos múltiplos.
Gonçalves e Leyerer[2], abordam o seguinte sobre a obra de Miguel:
“ Sempre que nos deparamos com a obra de Miguel, não conseguimos somente apreciá-la, nos sentimos forçados a lê-la!
Sim, esse admirável artista nos instiga e fascina com seus trabalhos, tal qual uma obra literária e, a vontade primeira é a de fazer uma leitura de seus quadros e objetos, em busca dos significados ocultos de toda a simbologia utilizada.
Ledo engano, pois a interrogação permanece, não há respostas e nem o intuito de estimular a busca por uma única; diante de seus trabalhos cada um encontrará a que mais lhe aprouver de acordo com, ou, sua vivência, consciência, preferência e sapiência.
Miguel leva para a tela a magia dos quadrinhos, revivendo nossos heróis da infância e adolescência; traz também traços marcantes do trabalho de outros artistas numa releitura pessoal, tudo inserido em grandes espaços, na amplidão do mundo do artista.
Em nosso entendimento, no infindável território da Arte, Miguel Gontijo se configura como o dialogador trinchante entre o humano, as coisas e o divino”.
Na verdade, Miguel vai beber na fonte de vários movimentos, linguagens, temas, artistas. Compõe sua obra como um grande maestro ao reger sua orquestra. Na composição de suas obras tudo é possível, nada é improvável. Picasso dialoga com Bosh, Bacon e Warhol estão ali muito próximos, o super-homem sobrevoa cenários medievais, a Pop-arte ou um merchandising estão sempre presentes. Surreal? Pode até ser. Ele mesmo nos diz, quando na década de 70, questionaram-lhe o estilo:
“Estilo? Surrealismo pop, realismo mágico, pode ser. Existe um pouco de cada, muito barrocão, alguns arranhões hiper-reais e outro tanto de esbarrões expressionistas. Um pastiche assinado, datado e com característica própria? Pode ser. Tal qual nas telas, meu estilo é o meu modo de ser e agir. Um enxoval de fraque e sandália”[3]
Na sua inquietude, e querendo provar um pouco de tudo, Miguel é também excelente escritor, e, falando de literatura e arte nos diz que:
“Na literatura rouba palavras e imagens na boca do outro. Na arte, acredita, toma de empréstimo obras de vários artistas, e descompromissadamente, faz uma instigante brincadeira. Tem os seus preferidos, mas ouça ir longe e fundo, desinterra, descobre, traz a luz de suas telas tesouros desconhecidos.”[4]
Mesmo se apropriando ou bebendo em outras fontes, sua linguagem é própria, é inteligente e muito instigante. Realmente nos remete a uma leitura da sua obra, nos convida a uma inusitada viagem.
Já Napier[5] diz o seguinte:
‘Miguel trabalha no significante da imagem. Nos fragmentos mnemônicos do vivido e do reprimido.
Retrata no Armarinho, nos Círculos Viciosos, nas Escrituras – as partes e particularidades em signos onipresentes: - aqueles que estão ali, pedindo passagem; um retorno à imagem incipiente, desejosa de se profanar e se infidelizar no espaço e no tempo.
Interpreta com sua pintura – teatralmente – o relacionamento que travamos com nosso inconsciente, num embate de onde surgem sensações e sentimentos num refazer de idéias e questionamentos.
Traz-nos à tona os arquétipos em suas incompletudes e faltas; de forma circular, rítmica e inquieta.”
Já Caldeira[6], acredita que para entender a obra deste artista é necessário conhecer um pouco da sua trajetória. Ele nos diz:
“Para entender a obra pictórica de Gontijo, torna-se necessário proceder a meticulosa pesquisa pretérita em sua trajetória. Nela se encontrarão os rastros que lhe alicerçam a existência e, numa catarse, afloram em seus desenhos, aquarelas, pinturas, objetos e livros. Tais vestígios são, por certo resultado de suas intensas divagações, traumas infantis e juvenis e, também, de garra e experiência em estudar, compulsar, analisar a história da arte, proporcionada por sua formação acadêmica, de vida e de convivência, em meio a uma sociedade repressora, perversa e ardilosa.
É, pois, a partir deste substrato que Miguel recolhe de seus devaneios suas belas e deformadas figuras, seus inimagináveis e viscerais monstros, suas cidades medievais edificadas por meio de minúsculas escrituras, as quais, quando reunidas sobre determinado suporte, proporcionam ao expectador visão e sensação feéricas, ao mesmo tempo de dor, de horror e de prazer.
Todos os sentimentos de repulsa como náusea, enfado, incômodo, que brotam no olhar do visitante ao apreciar uma obra do artista, convivem diuturnamente com o fazer deste artífice das tintas, tesouras e fogo. Assim, os pincéis, cores, telas e papéis ficaram diminutos para sua criatividade. Paralelamente às aquarelas do passado e as pinturas do presente, ele realiza uma série de catedrais de papéis, recortando-os e montando-os na posição vertical, com belíssimo resultado, atividade esta que remete, em outra escala, a Manet e sua busca incessante pelo registro, em seus quadros, da luz e suas variações, durante o dia.”
Percebe-se aqui, que Caldeira consegue elucidar esse emaranhado de informações que aflora na obra de Miguel. Conhecendo o artista e o desenvolvimento de seu trabalho, faz uma análise das influências pessoais e culturais que povoam o universo deste grande mestre.
Caldeira também nos conta em que fontes Miguel vai beber para construir sua obra. Como consegue ser contemporâneo ressuscitando artistas e movimentos do passado com artistas mais recentes. Como faz este diálogo, esta construção (no seu caso poderia-se dizer desconstrução). Diz[7]:
“A busca interminável por inspiração obriga Miguel a aprofundar-se no manuseio dos livros de sua biblioteca, com a intenção de encontrar determinada cena que dialogue com a trama de suas composições. Os volumes de enciclopédia servem de suporte a outra vertente de criação: recorte, apropriação, queima, pintura das páginas, e cada letra pode ser motivo de regozijo e de padecimento, transformando-se, afinal, em novas obras de arte.
Ainda não satisfeito com a variedade de suportes utilizados em suas pesquisas, transforma também os tecidos empregados diariamente para limpeza de seus pinceis em figuras repelentes e teratológicas, a transmitirem sensação desairosa pelo conjunto disforme. Ao mesmo tempo, e pelo resultado inesperado, causa curiosidade e surpresa.
Miguel Gontijo alinha-se, por tudo isso, à estirpe de artistas do calibre de Hieromynus Bosh e a mistura da realidade violenta e implacável de suas caricaturas humanas, com a audácia de seus devaneios; de Francis Bacon e as carnes retalhadas de animais e figuras deformadas; de Andy Warhol e suas marcas de produtos de consumo, hoje ícones da cultura norte-americana. Como eles, Miguel não admite qualquer condescendência para com seu público! Não existe preocupação em agradar a espectadores, admiradores, colecionadores, professores, pesquisadores, críticos e público em geral.
A inspiração e o processo de criação de Miguel Gontijo são sem parâmetros. O visitante, em suas exposições, deleita-se simultaneamente com seus monstros, suas figuras dilaceradas, sua escritura de textos indecifráveis, suas apropriações contemporâneas de armas e materiais medievais, delimitação de marcas registradas, na maioria de produtos brasileiros que, agregados ao seu sarcasmo crítico e político, vêm encontrando número cada vez maior de admiradores. E, por tudo isso, sua pintura se torna universal”
Nada mais apropriados para falar de sua criação que o próprio artista. Em recente artigo escrito para C\Arte, para um possível livro da série “depoimentos”, a ser publicado, ele nos concedeu em primeira mão, tal artigo para apreciação e leitura. Dele extraímos parte de seu depoimento onde nos fala sobre ser pintor, das Artes Plásticas e do seu trabalho.
De repente vejo-me desaguado na década de 60, preparando-me para ser pintor. Inegável que esse é um período de cores fortes e ideais nobres e minha juventude se aqueceu nessas efervescências. Porém não podia prever que essas cores já estavam desbotando e, se pretendia ser um pintor, teria que enfrentar moinhos de ventos, já já, na próxima esquina.
Ser pintor numa época em que a pintura está aviltada, decadente e “fora de moda”, é difícil tarefa. Intelectuais, universidades, bienais, galerias e até mesmo as Artes Plásticas referem-se a ela com desprezo. O único eixo que ainda a quer viva é o Mercado, que é burro e despretensioso com o momento em que se vive. A pintura nasceu amaldiçoada. A música, o teatro, a poesia sempre tiveram seus deuses. A pintura não teve o patrocínio do Panteon e dos heróis da Antiguidade. O pintor é antes de tudo um homem que trabalha com as mãos, o que significa que ele não pode contemplar ideias de qualquer teoria, amaldiçoa Platão. Ser pintor é carregar a sina de inferioridade social. Posso até entender Platão e sua turma quando vejo essas ideias como fonte de indagação da formação do nosso pensamento. Mas não posso entender essa máxima, agora, em meu tempo, ecoar até mesmo dentro das universidades. Subliminarmente a Arte Conceitual se apoia nisso. Para que fazer? a ideia basta! Até mesmo “pintores” socialmente expressivos, em palestras, dizem: “mandei uma pintor habilidoso fazer, retalhei sua tela e a remontei dessa e daquela forma”. E as grandes oficinas de pintura como a de Jeff Koons e Murakami onde o pintor é apenas o empresário? E eu, pequeno burguês, que já disse anteriormente não me sentir confortável com a alcunha de artista? Isso não passa de um ranço do pensamento Clássico e um reflexo de nossa época conturbada. Que a pintura está decadente e sem apontar nem definir rumos, é fato. Mas isso não a elimina. O que está decadente somos nós, pintores. A pintura é apenas um suporte de expressão. Ela em si não defende nada. O artista, sim. Após as Vanguardas as universidades se encheram de dogmas, esquecendo que nas Artes Plásticas “talvez” é uma forma de evolução, “certezas”, nunca.
Feito meu desabafo, caminhemos.
A beleza plástica não me seduz. O que procuro é o algo que desperte meu pensamento, e a tradução do insigne para com as Artes Plásticas. A imagem do sublime é de fácil aceitação quando se trata de uni-la a beleza e a poética do pieguismo. Elegi fazer trabalhos através da estética do grotesco. Sempre soube que pagaria um alto preço por isso. As pessoas procuram (e querem) a placidez das imagens e das cores. O público aceita a “Mulher que Chora”, de Picasso; “Saturno Devorando o Filho” de Rubens; “O Sabá das Bruxas”, de Goya e “A Cabeça de Medusa”, de Caravaggio, entre outros, é pelos seus autores, não pela obra. Foram necessários 500 anos para que Bosch saísse dos porões dos museus. Foi necessário uma estrela pop – Madona – tornar-se colecionadora pública de Frida Kalo para que ela passasse a ser cultuada. Mesmo reconhecendo essa dificuldade que meu trabalho enfrenta, não vou abrir mão da estética que escolhi. Normalmente as pessoas querem obras que não exijam nada delas. A placidez do olhar é tudo. Sendo o humor um componente intrínseco do grotesco o meu trabalho apoia-se, também, dentro dessa vertente. Costumo a dizer, com muito orgulho, que não enfeito a casa de ninguém, porém defino a cara do dono de quem sustenta meu quadro em sua parede.
Nada em meus trabalhos aparecem via inconsciente. Tudo é pensado e elaborado segundo meu modelo estético, seguindo uma pré-intenção de desejos e significações. O resultado é surrealizante, porém eu não o vejo Surrealista, embora, muitas vezes, alguns conceitos se cruzam, como a abolição de uma ordem temporal e espacial. Não existe o sonho como fonte criadora e eu abomino o onírico. Também não há super-realidades e nem sequências alucinatórias. Não existe na tela a paisagem para que os personagens se sustentem, porém cria-se sempre na mente do espectador, uma linha imaginária subjetiva que divide o quadro em dois planos: superior e inferior. Frequentemente uso as diferenças para gerar significados. Identifico-me mais com a irreverência do Dadaísmo e encontro sempre em meus quadros um misto de ironia, cinismo e niilismo anárquico.
Às vezes deixo a sensação de que fiz uma colagem em minhas pinturas. Esse jogo de gato e rato, real e imaginário, herdei do dadaísmo, utilizando essas dualidades com um propósito anárquico; ou do cubismo, dando a obra, deliberadamente, um duplo sentido. Porém, raramente, fiz alguma colagem nos meus quadros. Tenho que resaltar que, sob certo sentido, todo o meu quadro não passa de uma colagem, onde a tesoura são os meus olhos que recortam elementos que me interessam no contexto em que vivo e os ‘colam’ na tela, através dos meus pincéis
Meu trabalho é, constantemente, identificado como barroco. Embora essa identificação é comumente de caráter pejorativo, como se eu não fizesse mais parte do contexto contemporâneo, estou, sim, inserido nessa escola. Seja pela herança cultural, seja pela forma que elegi para me expressar. O barroco, na minha forma de expressão, se insere numa perspectiva que contempla aspectos subjetivos da ambiguidade, do excesso e da repetição. A forma labiríntica que componho a narrativa e a profusão de paródias acentuam essa característica, deixando tudo parecer um devaneio. Hoje, vários teóricos defendem a ideia de que o barroco não só define um período da história da cultura, mas também como uma atitude generalizada e uma qualidade formal dos objetos que o exprime. Ser barroco é uma categoria do espírito, oposto ao clássico.
Pintar é uma ação integral que inclui a ideia, a linguagem, a palavra, o símbolo, a história, o humor e a capacidade de reflexão crítica da realidade. Estou sempre com uma caixa de diálogo aberta, seja lá com os grandes mestres da arte, ou com um panfleto roto encontrado pelas ruas, em busca de citações que elaboram significados e dá espessura a imagem que quero criar. O desenho acadêmico está presente como um fiel reflexo das minhas investigações, sempre a propor um olhar abrangente do universo em que vivo. Esse desenho é uma atitude do meu espírito inquieto que desliza entre o urbano e o rural, entre a civilização e a barbárie, entre o imaginário e a realidade. Não faço uma pintura narrativa. Apenas ofereço os dados ao espectador. Sempre espero que meus quadros construam um mundo autossuficiente, por isso dispensam explicações posteriores.
Meu processo criativo é através da depuração das imagens que habitam meu olhar. Para isso, levo em conta, simultaneamente, a representação e o meio pelo qual essa representação se dá. Quero crer que minha estética está alicerçada em dois diretores de cinema, que muito gosto. Quando aposso de uma imagem quero dar a ela as feições e ao seu espaço, o enquadramento felliniano. As sobreposições, desinquietudes e acúmulos, identifico-me com o cinema de Greenaway.
Não tenho uma receita culinária de como faço um quadro. Simplesmente faço. A tela em branco me fascina. Ao olhá-la nasce em mim o desejo de profanação, de violação e incitamento. Creio que o branco e o formato do espaço são as molas propulsoras iniciais da trama que vem a se desenrolar. A seguir, não sei precisar como, procuro numa caixa cheia de fotos (que coleciono aleatoriamente), uma imagem que meu instinto já elegeu previamente e minha razão desconhece. Às vezes ela é reproduzida literalmente na pintura, outras vezes torna-se apenas uma parca citação. Não adianta que eu eleja uma imagem previamente. Ela não acontece. Creio que ela precisa adormecer um tempo nessa caixa, para que meu cérebro a mastigue e rumine, até chegar a hora de seu acontecimento. No momento em que a primeira imagem se define na tela abre-se um verdadeiro debate entre eu e o quadro. Entre o vela\revela, arrepende\retoma, evidencia\ofusca a pintura acontece. Acredito que, por mais perfeito que um quadro se torne, deve sempre conter uma brecha para o inacabado, a imperfeição, o vazio, para que propicie um eterno renascer no cerne do que há de indecifrável em seu signo. Não gosto de teorizar uma ideia para executar um quadro antes de colocar a “mão na massa”. Se teorizo distorço os fatos para adaptá-lo a conceitos pré estabelecidos, retirando da obra sua energia vital. Parece que a teoria é o mal de grande parte da produção da Arte Contemporânea, que gosta de produzir obras mornas.
Não sou um pintor por excelência. Coloro meus desenhos. O emprego das tintas e luzes ocorrem conforme a conveniência do momento, livre dos conceitos acadêmicos. Não tenho uma preocupação com os valores estruturais das teorias artísticas. Por meio de distorção da forma, acúmulos, alterações, hibridismo de linguagem, minha pintura se faz através de costuras e comentários sobre a vida e sobre a própria historia da arte.
Durante muitos anos fiz aquarelas. Abruptamente deixei de fazer, pois a técnica não me oferecia mais oportunidades. Cheguei ao meu limite. Aprendi sozinho, examinando os trabalhos alheios, com acuidade e zelo, tentando chegar perto daquilo que via. Passei a pintar da mesma forma. A pureza, a limpeza, as certezas e a concepção prévia do que iria ocorrer na aquarela passou a me tolher. Queria o sujo, o removível, a liberdade de gestos e ações. A pintura acrílica\óleo ofereceu-me essa oportunidade.
Não posso dizer que tenho um artista preferido. Sei que iria traí-lo. Jurei amor eterno a vários. O único que eventualmente vou descansar em sua companhia é Durer. Talvez Freud e Édipo expliquem, porque era dele as ilustrações do missal de minha mãe.
É perigoso o que vou afirmar, mas é honesto dizer que não morro de amores pela pintura. Gosto é da “ideia de pintura”. Gosto é de imagens. Morro, sim, é se não puder exercer o direito de fazê-la. Executando-as todos os meus instintos estão libertos e as emoções se renovam; porém, executada, á regra corrigiu todas as emoções.
Quando faço exerço o dom da coragem; quando fiz tenho a sensação da covardia.
Quando pinto posso falar de tudo e não ter medo da complexidade; quando pintei não existe como fugir da complicação gerada.
Quando fiz, sinto-me fadado a retrospectiva infinita de tudo que me procedeu.
Atrás de cada quadro há um miguel que desapareceu. É como se em cada quadro eu tivesse engolido o meu espelho, me tornado transparente para mim e incapaz de criar novas ilusões. O que me salva dessa tragédia é a compulsão que me impele a pintura. É rir de mim mesmo.
A pintura é um simulacro que me torna uma máquina a lutar comigo. Não há nada, na vida e na arte, além da simulação.
Sou artista porque tenho fé e fé é o que dá existência aquilo que não existe. E a despeito de tudo, posso neuroticamente afirmar: sou feliz.
Quando falamos de Miguel e seus trabalhos, pode-se ter a impressão de não ter sido muito claro, mas o que não podemos esperar de sua obra é clareza, simplicidade e obviedade. Não ser, pode ser sua proposta, bem como seu futuro pode estar no passado, porque o presente pode ser uma encruzilhada, e o caminho a seguir será sempre uma incógnita, imprevisível. Para ele a vida não é como um dicionário, as palavras, as imagens, as idéias, não tem uma correspondência única ou exata, pré-definida, algo que se possa associar. Ainda que haja uma associação, a leitura de sua obra é subjetiva, improvável e deliciosamente brincalhona.
Concluindo ele nos diz:
“O que faço, o que penso, pode não ser meu, mas é do que sou composto”[8]
É como se submetesse a uma inseminação, para pró-criar a sua obra.
Anexo – Fotos
Fotos Edgar Garcia
GONTIJO, Miguel. Pintura Contaminada. Belo Horizonte: Vallourec & Mannesmann do Brasil, 2009.
GONTIJO, Miguel. Profanas Escrituras, índex rerun Et vervorum. Belo Horizonte :MG- Expressoarte. 2003.
GONTIJO, Miguel. Enquanto sô lobo não vem: Catálogo da Exposição. Curadoria de João Carlos Pereira Vargas – Muriaé:Centro Cultural e Turístico Regional Dr. Pio Soares Canêdo. 2009.
GONTIJO, Miguel. I Modi.Cenas de Amor e Guerra. Belo Horizonte: 2008. Catálogo da exposição realizada na Pequena Galeria do Teatro da Cidade-BH.
GONTIJO, Miguel. Círculo Vicioso. Belo Horizonte: Espaço Cultural Vallourec & Mannesmann Tubes. 2008 – Catálogo da Exposição. Curadoria Robson Soares.
REIS, Eduardo Almeida. A Marca do Gênio. Diários Associados.Belo Horizonte. 2012.
[1] REIS, Eduardo Almeida. A marca do gênio. Diários Associados. Belo Horizonte. Coluna Pena Capital.
[2] GONÇALVES, Eliana Toledo, LEYERER, Manfred. Círculo Vicioso: Belo Horizonte: 2008. Catálogo de Pinturas de Miguel Gontijo.
[3] GONTIJO, Miguel, Pintura Contaminada. Belo Horizonte: Vallourec & Mannesmann do Brasil, 2009. P.24.
[4] GONTIJO, Miguel – Pintura Contaminada, Belo Horizonte: Vallourec & Mannesmann do Brasil, 2009. .p24.
[5] NAPIER, Gilca Maria Hubner Vieira, Enquanto sô lobo não vem, Muriaé: 2008. Catálogo da exposição
[7] CALDEIRA, Paulo da Terra, Círculo Vicioso: Pinturas de Miguel Gontijo, Belo Horizonte: Vallourec & Mannesmann do Brasil, 2008.